A Viagem Monocromática

projeto de 365 dias

Os Monólogos de Vento.

Texto e fotografia por Tiago Mateus.

Publicado em maio de 2023 na revista PERSPETIVA. www.revistaperspetiva.pt

“Comprometo-me a fotografar durante um ano sem o uso da cor, a explorar novas técnicas de produção e edição e a partilhar os sucessos e os fracassos. Para tal poderei usar todos os equipamentos ao meu dispor sem restrições. As doces cores da primavera não serão uma tentação e no outono não me deixarei levar pelos vermelhos ardentes do pecado colorido!” ~ Tiago Mateus in Perspetiva 08, Março 2023

Dia 85 da minha viagem monocromática.

O vento, uma massa de ar incomensurável que se move, incessantemente, sobre qualquer superfície no mar ou em terra, desde o ponto mais alto da estratosfera até ao ponto mais baixo do Mar Morto, na Jordânia. A enganadora leveza da sua constituição, o ar, tem a capacidade de destruir, esmagar ou retorcer qualquer coisa que se oponha à sua passagem. São triliões de toneladas de moléculas que se agitam e repelem na gigantesca entropia invisível ao olho humano.

Hoje, a ciência afirma que o sol, fonte de energia infinita à nossa escala temporal, alimenta esta massa destruidora, não somente no seu movimento caótico, mas também com a origem da vida em forma de pequenas gotas de água que são transportadas nestes turbilhões. Contudo, eu, como artista, apenas consigo pensar na imensa carga emocional que o vento transporta para as paisagens que fotografo.

Quando fotografo junto da costa fico sempre com perguntas que simplesmente não têm resposta. Por exemplo, quantas toneladas de ar foram necessárias para contorcer, de forma tão intrincada, os troncos daquelas árvores ou destes arbustos? E esses milhares de toneladas de gases serão comparáveis às toneladas de areia e rocha que as insignificantes raízes destas plantas sustêm ao longo destes quilómetros de arribas expostas à passagem do tempo?

O fascínio e inquietude que sinto por estas paisagens castigadas pelo vento não é novidade. Em 2018, quando comecei a fotografar a linha de costa a norte e a sul de Lisboa, uma das coisas que me dava mais prazer documentar era a erosão costeira. Cada vez que ia aos locais, conseguia sempre detetar pequenas diferenças na paisagem e, por vezes, até mesmo o destino das minhas saídas fotográficas, para norte ou para sul, era ditado pela direção em que o vento soprava.

Vale do Caetano. Serra de Montejunto, 2023

Vale do Caetano. Serra de Montejunto, 2023

Mais tarde, descobri os maravilhosos pinheiros-mansos deitados da Mata Nacional dos Medos e das Arribas da Grota. Cheguei mesmo a apresentar parte deste trabalho no IRIS - Festival de Imagem do Gerês, em 2022. Contudo, queria trazer algo novo à revista Perspetiva e esta viagem monocromática veio abrir novas possibilidades e uma maior flexibilidade criativa. A exclusão da cor tem o poder de eliminar distrações e faz com que nos concentremos em formas e texturas complexas com maior facilidade, adicionando uma camada extra de abstração à imagem. As fotografias que vos trago hoje, feitas no final do inverno, espelham issomesmo. O destino seguinte nesta viagem foi um dos sítios mais ventosos que conheço, a Paisagem Protegida da Serra de Montejunto. Apesar de ser um sítio que tenho fotografado pouco, sabia que existia um enorme potencial para lá encontrar as minhas fotografias de vento. A serra não é muito alta, 666m, mas por se tratar de uma montanha isolada, muito perto do mar, o vento é implacável desde a sua base até ao cume e lá encontramos árvores verdadeiramente domesticadas pelo vício do vento.

Os que já me conhecem, certamente saberão que nenhuma das fotografias que fiz foi improvisada. Naquele dia de chuva e nevoeiro já conhecia todas as árvores que fotografei. Alguns dias antes, com um clima mais soalheiro, havia feito um reconhecimento do terreno. E é neste ponto que tenho de ser franco convosco. Como vos prometi, no primeiro artigo e na definição deste desafio, todos os sucessos e insucessos devem ser publicados. Passo a explicar: as fotografias estão boas e gosto delas! Sim, são fotografias de vento e, muito provavelmente, serão usadas nos meus projetos e, quem sabe um dia, farão parte de uma publicação. Mas algum tempo depois desta saída questionei-me: “Qual é a diferença entre estas fotografias e o trabalho que tenho feito na Mata dos Medos? Onde estão as novas experiências? A novidade? Não basta ser a preto e branco, o desafio serve para experimentar coisas novas! São só mais umas árvores a preto e branco no meio do nevoeiro...” pensei.

A partir deste ponto voltei à estaca zero e comecei a pensar no que poderia fazer de novo, seguindo a mesma metáfora da fotografia de vento que tanto me fascina.

Paisagem Protegida da Serra de Montejunto, 2023

Paisagem Protegida da Serra de Montejunto, 2023

A Memória do Vento. Serra de Montejunto, 2023

A Memória do Vento. Serra de Montejunto, 2023

Uma nova abordagem

A criatividade é como as marés, a seguir à baixa-mar vem sempre a preia-mar, e, neste último mês, a falta de nuvens e chuva até me ajudou a chegar à ideia das fotografias de vento seguintes.

Desta vez, uma parte da inspiração veio do fotógrafo inglês Jasper Goodall. O trabalho do Jasper não é exclusivamente a preto e branco, mas o que me inspirou foi uma das series monocromáticas dele onde fotografa bosques à noite utilizando luz artificial, o que confere um dramatismo e teatralidade inigualável às arvores e as suas formas.

A outra parte da inspiração veio daí mesmo, da teatralidade que tanto aprecio nas minhas fotografias. Sei que é um conceito um pouco vago, mas gosto de fotografar de forma intencional e abordar os conceitos criativos de forma racional. Pretendia um grafismo muito específico para produzir estas fotografias e pensei usar uma técnica que não tem nada de inovador, mas que é muito utilizada nas artes de cenografia e iluminação das peças de teatro. A iluminação cénica pode criar significados, atmosferas, contrastes e tridimensionalidade na cena, além de iluminar e destacar os atores e o cenário. É uma linguagem poética-visual que requer uma educação do olhar para ser apreciada e analisada.

A luz é o oxigénio do ator, pois quanto mais ela o destaca, mais o seu personagem cresce.

Assim, como se a fotografia de uma peça teatral se tratasse, imaginei um monólogo. O ator sozinho em palco representaria a personagem de um velho. A Iluminação seria simples, um foco de luz dura iluminaria apenas a personagem, dando ênfase ao seu rosto marcado pela idade. Aquela luz, de certa forma intimista, e o palco escuro, confeririam a carga emocional necessária para que o personagem contasse a sua complicada e retorcida história de vida.

Com este conceito em mente, meti na mochila um pequeno flash com disparador remoto e fui fotografar, mais uma vez, para um sítio extremamente ventoso, a Zona de Proteção especial do Cabo Espichel. É um sítio que conheço bem e ao qual costumo chamar em jeito de brincadeira “o meu escritório”, como tal, caminhando por entre dossiês e papelada não demorei a encontrar em duas ou três saídas alguns personagens com histórias de vida incríveis, marcadas pela terrível nortada que certamente valia a pena contar. As personagens desta peça são uma das poucas espécies que consegue resistir aos ventos fortes, ao ambiente salino e à aridez daqueles solos: os arbustos juníperos.

O velho da praça. Sesimbra, 2023

O velho da praça. Sesimbra, 2023

Muitos deles, a avaliar pela grossura do tronco e raízes, devem ter algumas dezenas de anos e, ao longo desse tempo, desenvolveram formas verdadeiramente estranhas, no mínimo. O sol por aquelas paragens não dá tréguas e foi necessário esperar que ele desaparecesse sob o horizonte para que o flash surtisse o efeito desejado no palco escuro. A parte de realização não foi simples e foram necessários vários ensaios. A câmara mais o disparador remoto do flash estavam montados no tripé e eu com o flash e o telemóvel na mão noutro canto do palco controlava a câmara remotamente por wifi, tentando ao mesmo tempo, posicionar o flash para a iluminação dramática do personagem quando o obturador era acionado pelo telemóvel. Parecia um número de circo repetido inúmeras vezes até que a luz ambiente se tornava tão fraca que o palco se transformava numa papa monocromática sem definição, altura em que o melhor era ir para casa ver os resultados.

Depois de apreciar os resultados, mais uma vez tenho de ser honesto, gosto das fotografias, especialmente a fotografia “O Mundo Invertido” que me faz lembrar algo saído da série americana “Stranger Things”, mas sinto que falta algo, não me senti totalmente realizado.

Por isso, pretendo voltar a esta técnica mais tarde, talvez com outros temas ou personagens, e quem sabe com mais fontes de luz.

Obrigado por me acompanhares nesta viagem.

Na varanda a ver quem passa. Sesimbra, 2023

Na varanda a ver quem passa. Sesimbra, 2023

"A senhora Nortada", Sesimbra, 2023.

"A senhora Nortada", Sesimbra, 2023.

O mundo invertido. Sesimbra, 2023

O mundo invertido. Sesimbra, 2023

Os Pensamentos que nos Atormentam e as Ideias Geniais.

Texto e fotografia por Tiago Mateus.

Publicado em março de 2023 na revista PERSPETIVA. www.revistaperspetiva.pt

“E se um dia eu começasse a fotografar apenas a preto e branco?”

Foi precisamente este o pensamento que tive em mais uma saída fotográfica, em dezembro do ano passado, num dos muito raros dias de nevoeiro na Mata Nacional dos Medos, cujas fotografias partilho neste artigo. Esta belíssima reserva botânica, constituída essencialmente por aroeira, medronheiro e pinheiro-manso, fica praticamente no meu quintal. A mata gerida pelo ICNF está cada vez mais sujeita a uma grande pressão humana, devido à sua proximidade com as cidades de Almada e Lisboa, mas também por ser agora uma grande aposta turística do concelho com a construção de 5,6 km de passadiços. Um lugar anteriormente silencioso tornou-se palco de romarias e peregrinações domingueiras, multidões de chinelo e salto alto atraídas pela ilusão de caminhar pela natureza. Porém, a mata ainda tem alguns cantos escondidos muito bonitos que poucos conhecem, livres de contracetivos e papel higiénico.

Tem sido nestes cantinhos que tenho feito grande parte do trabalho fotográfico destinado ao meu projeto “Pinus Pinea” dedicado ao pinheiro-manso. Neste trabalho tenho destinado grande parte do tempo a retratar as histórias dramáticas desta espécie que considero uma árvore mártir por estas bandas, devido à proximidade da mata com o oceano Atlântico, cujas tempestades vão deixando mazelas nas árvores, especialmente durante os meses de inverno. Mas, naquele dia, optei por fotografar cenários com histórias um pouco mais alegres, alguns com árvores juvenis, outros dando mais ênfase ao grafismo e teatralidade das formas e gestos elegantes dos troncos e copas, com o sol, por momentos, espreitando por entre o nevoeiro, o que conferia um sentimento, por vezes, angelical aos sujeitos.

Voltando ao pensamento que tive em plena mata. Muitas vezes, em dias que estou com mais dificuldade em concentrar-me, coloco o Live View da minha Fujifilm X-T2 com uma simulação de preto e branco. Isso, normalmente, ajuda-me a afinar as composições, removendo do ecrã a distração que a cor normalmente me provoca, sabendo que, como fotografo em formato RAW, mais tarde muito provavelmente irei editar a fotografia a cores. Este processo ajuda-me a ver com mais clareza as formas, texturas e, acima de tudo, as diferenças na luminância de uma determinada cena.

Mata Nacional dos Medos, 2022

Mata Nacional dos Medos, 2022

Ora, no dia de inverno em que tive este pensamento, verdade seja dita, a cor não era abundante. A luz suave típica de uma manhã de nevoeiro tornava tudo muito dessaturado, portanto, nesse dia, tudo me parecia lógico e natural. Dias passaram, mas a semente dessa ideia já tinha sido plantada. Sucederam-se outras saídas, na Serra de Sintra, na Serra de Montejunto e no cabo Espichel e, mais uma vez, a máquina manteve-se inconscientemente em modo monocromático. Estava a definir-se um padrão, desenvolvera uma incapacidade em aceitar a cor no meu processo criativo mas, por outro lado, a minha suposta incapacidade revelava-se muito produtiva! É que após atravessar mais uma espiral depressiva, daquelas em que achamos que a nossa fotografia não vale nada, que passamos dias e dias sem vontade de fotografar – coisas de artista – tinha novamente recuperado aquela faísca, aquele sentimento de novidade e de descoberta, apesar das paisagens serem exatamente as mesmas. A forma de liberdade criativa que esta abstinência proporcionara tinha levantado, de alguma maneira, o meu espírito criativo!

A simplificação, a abstração e a novidade provocada pela ausência de cor foi a lufada de ar fresco que estava a precisar para sair daquela situação que se arrastava há dois meses.

Semanas mais tarde, depois de me aperceber do que se estava a passar, voltei a questionar-me: “e se a partir de agora passasse a fotografar apenas a preto e branco?”

A pergunta desta vez deixou-me ansioso e confuso, o que aconteceria se não fosse inverno? Como poderia eu, um fotógrafo de paisagem,

trabalhar durante a primavera e o verão sem o uso da cor? Os rebentos tenrinhos, as flores e os por-do-sol passariam a ser uma papa monocromática no ecrã do computador? Ou seria esta uma oportunidade para explorar coisas diferentes e desenvolver a minha criatividade? O que aconteceria ao meu estilo fotográfico? Perderse-ia? Vocês deixariam de apreciar o meu trabalho? Então e as cores de outono?!

Mata Nacional dos Medos, 2022.

Mata Nacional dos Medos, 2022.

Mata Nacional dos Medos, 2022.

Mata Nacional dos Medos, 2022.

Como devem perceber, isto para um artista édramático, e apesar de estar a recuperar da minha espiral depressiva, estes pensamentos voltaram a encher-me de angústia e ansiedade, e recordei os falhanços do passado recente.

Em 2021, inspirado nos mantras do minimalismo, decidi adquirir uma máquina fotográfica muito simples, uma Olympus EP-1, modelo de 2009, e uma única objetiva de 45mm f/1.8. O objetivo era limitar as minhas escolhas e dessa forma espicaçar a minha criatividade na produção de fotografias a preto e branco ao estilo minimalista. O desafio a que me propus na altura parecia simples, faria apenas fotografia a preto e branco utilizando este equipamento e limitarme-ia a usar rácios de imagem panorâmicos semelhantes à famosa Fujifilm XPAN (65:24) e quadrados (1:1).

E assim foi. Comecei, cheio de entusiasmo, inspirado pelas longas exposições, surreais, de Alexey Titarenko, pelas panorâmicas de Josef Koudelka e pelos quadrados minimalistas do galego Adrian Vila e do nosso Alexandre Caetano, mestres neste estilo. Porém, nessa altura, por falta de coragem ou ambição, a ideia era fazer esta experiência minimalista paralelamente com a minha fotografia habitual.

Inevitavelmente, o falhanço foi magnífico!

Acho que não fiz uma única fotografia minimalista. Todas as composições pareciam ricas em complexidade, cheias de texturas interessantes que enriqueciam as fotografias graficamente, afastando-as cada vez mais da beleza purista do minimalismo. Por outro lado, também me senti espartilhado, obrigado a usar um equipamento tão limitado. Ah! E também comecei a fotografar a cores, um pequeno detalhe...

Não querendo comparar-me a tamanho talento, era como se o famoso pintor italiano Michelangelo tentasse pintar a Capela Sistina usando apenas um pincel de 40mm e uma lata de tinta preta. Aos poucos e poucos comecei a usar cada vez menos aquela máquina e o projeto caiu sem grande estrondo.

Em janeiro, regressaram os dias de sol e eu continuei a sair para fotografar com a máquina ainda encravada no modo monocromático. Contudo, desta vez com muito mais cor à minha volta e, para ser franco, a ideia começou a parecer-me muito estúpida. Apesar disso, não parei e, como tenho uma formação de base científica, decidi formular uma experiência para determinar se efetivamente seria uma ideia estúpida ou um golpe de génio.

Arte Nova, Mata Nacional dos Medos, 2022.

Arte Nova, Mata Nacional dos Medos, 2022.

Angelical, Mata Nacional dos Medos. 2022

Angelical, Mata Nacional dos Medos. 2022

Esta experiência consistiria em fazer uma espécie de ano sabático para o estudo exclusivo da fotografia a preto e branco, desta vez sem restrições de equipamento, estilo, género ou tema fotográfico. O único requisito seria a exclusão da cor. Esta decisão também não implicaria interromper os meus projetos em curso, visto que em todos eles tenho séries de fotografias monocromáticas e, além disso, posso sempre fazer a edição novamente a cores caso necessário, utilizando o ficheiro RAW no final da experiência.

Os desafios da minha viagem

Assim, deixo aqui o meu desafio: comprometo-me a fotografar durante um ano sem o uso da cor, a explorar novas técnicas de produção e edição e a partilhar os sucessos e os fracassos. Para tal poderei usar todos os equipamentos ao meu dispor sem restrições. As doces cores da primavera não serão uma tentação e no outono não me deixarei levar pelos vermelhos ardentes do pecado colorido!

Não será fácil! Uma coisa é chegar a casa e, ao computador, decidir colocar a fotografia a preto e branco porque as cores não estavam boas ou porque a luz não era a desejada. Penso que todos já passámos por isso, tentar remediar uma imagem com a desculpa de que é uma boa candidata para preto e branco, desrespeitando a nossa visão criativa no terreno. Outra coisa é sair de casa com intenção de encontrar sujeitos e temas que fiquem perfeitos a preto e branco e apenas fazer isso! Todo o processo requer uma abordagem totalmente diferente da fotografia a cores e é com esse processo que pretendo enriquecer a minha viagem como artista.

Partilharei aqui todas as minhas descobertas, sucessos e fracassos, abordarei questões técnicas de produção e edição, novas experiências e outros fotógrafos que me inspiram. Mas, principalmente, partilharei o meu melhor trabalho fotográfico nesta viagem de aprendizagem para um destino que ainda não conheço.

Mata Nacional dos Medos. 2022

O reencontro, Mata Nacional dos Medos, 2022.

O reencontro, Mata Nacional dos Medos, 2022.

Mata Nacional dos Medos. 2022

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